quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Terceiro

Uns gritos cortando a madrugada. Tive o prazer lendário de ter escutado pássaros cantando o amanhecer - eu era criança. Já sou peça rara. Lembranças dignas de antiquários me povoam a memória. Agora a vida é precoce. Nasce antes do sol e ainda nasce de fórceps. Não são pios, berros rasgam o sono com mãos de terror. Uma mulher grita e corre. Socorro! Bom dia - o dia nasceu. Qualquer um que se deite em meu travesseiro padece um tipo de pesadelo. O dia, no fundo dos olhos, não nasce; morre. E a mulher correndo na rua luta por um tipo de ajuda e uma forma de sobrevivência... Antes que a catedral badale seis badaladas algum liquidificador demoníaco aquece as cordas vocais. Disputa com os gritos da mulher e o faz ferozmente. E acha que o faz melodiosamente mas vocifera. Eu já amei um homem e escutava ao longe as badaladas. Quando ele se mudou para longe das badaladas ele começou a deixar de me amar. Um tempo depois eu também já não o amava tanto. Quando ele se mudou ficou evidente que eu não cabia na mudança. Eu nunca coube em lugar algum dele, afinal. Mas por aqui, nesse onde em que habito, são tantos ruídos que era mais fácil eu permanecer. A mulher parou de gritar. Ou não parou, mas agora corre longe. O demônio do liquidificador silenciou. As seis badaladas da catedral já se fizeram ouvir. Abro os olhos e nenhum homem que eu ame ao meu lado. Eu rio por dentro e respondo a isso tudo. Bom dia.

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