quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Quarto

Precipitaram-se do céu uns pingos miserentos. Daqueles suicídios inúteis, incapazes de comover. O calor piorou. Quiseram parir mormaço. O mundo manca todo muito incapaz, nem isso se conseguiu. A seca ainda vence. É só quente. É só inferno. Semana passada tinha um corpo estendido na rua da catedral. A igreja badalou, mas não o morto, as horas. E me disseram, do púlpito o pai de batina rogou aos devotos de algum tipo de deus que não entendo que não dessem esmolas aos mendigos da beirada do santuário. Sem vírgulas, sem parênteses. Eu penso às vezes - calor deforma caráter. Isso, cogito; mas sei, faz apodrecer tudo mais rápido. Temi o corpo exalando e atrapalhando a vida do bairro. Naquela rua há palmeiras e acho bonito. Gonçalves Dias ficaria contrariado. Podridão não combina com palmeiras. Seria o caso de arrancar as palmeiras? Coisa resolvida pela ágil polícia. Removeram o corpo. Rapidamente. Lembro dos anúncios de televisão, sedutores para alguns, de produtos miraculosos de tira-óleo, tira-limo, tira-pensamento. A chuva, quando chegar, removerá as manchas do chão. E a morte de todos removerá as marcas sabidas, mas silenciadas em mim, a cada vez que novamente ouvir o sino.

Um comentário:

  1. "Daqueles suicídios inúteis, incapazes de comover."

    interessante sentença.

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